Os segredos do cavalo-marinho
Esses peixes têm um sistema reprodutivo atípico: a incubação dos
filhotes é feita nos machos. Em sua coluna de março, Jerry Borges
explica como isso acontece e mostra como os cavalos-marinhos podem
inspirar pesquisas sobre a reprodução humana.
Por: Jerry Carvalho Borges
Publicado em 05/03/2010
|
Atualizado em 05/03/2010
Cavalo-marinho da
espécie 'Hippocampus histrix'. Esses animais pertencem a um dos poucos
grupos de peixes que se reproduzem por viviparidade, sistema incomum
entre os peixes (foto: Nick Hobgood).
Os cavalos-marinhos e seus parentes, os peixes-pipa, pertencem à família dos singnatídeos, um grupo taxonômico que se reproduz por viviparidade. Essa forma de desenvolvimento é encontrada em todos os grupos de vertebrados, com exceção das aves, mas é pouco comum entre os peixes.
A viviparidade é definida como o nascimento de filhotes bem desenvolvidos e ativos e está associada com a fecundação interna e o desenvolvimento embrionário e fetal no interior do corpo de um dos pais.
Os organismos em que ocorre esse tipo de incubação têm custos energéticos elevados e riscos maiores de predação. Embora os organismos vivíparos apresentem tamanhos reduzidos de ninhada se comparados com espécies que se reproduzem por meio de ovos (ovíparas), a viviparidade permite uma maior sobrevivência da prole, pois minimiza a influência ambiental durante o desenvolvimento embrionário.
A viviparidade é encontrada em 54 famílias de peixes, mas ocorre em apenas 2-3% das cerca de 30 mil espécies conhecidas. Como essas espécies não possuem útero, o desenvolvimento da prole ocorre na cavidade ovariana ou folicular.
A nutrição embrionária pode ocorrer através do vitelo, de outros ovos ou mesmo de outros embriões. Em algumas espécies os recursos alimentares e os gases respiratórios são fornecidos aos embriões através de estruturas epidérmicas, de projeções intestinais, de pseudoplacentas foliculares ou de estruturas similares a placentas, mas que possuem vitelo.
Casos raros
Sempre que se fala em viviparidade, pensamos logo na incubação da prole no corpo das fêmeas. Há, contudo, alguns casos extremamente raros em que o desenvolvimento embrionário pode se processar no corpo de machos.Alguns exemplos desse tipo incomum de incubação ocorrem em duas espécies de pequenos e ameaçados anfíbios habitantes do sudoeste da América do Sul e conhecidos como sapos de Darwin (gênero Rhinoderma). Esses animais apresentam fertilização externa e seus embriões se desenvolvem por cerca de 20 dias no meio ambiente até se transformarem em girinos e serem capturados e mantidos em expansões bucais dos machos, conhecidas como sacos vocais, até sua metamorfose.
Peixe-pipa da espécie 'Corythoichthys haematopterus'. Assim como os
cavalos-marinhos, esses animais pertencem à família dos singnatídeos,
uma das 54 famílias de peixes vivíparos (foto: Steve Childs).
Em algumas espécies de singnatídeos, os machos mantêm os embriões em desenvolvimento em uma bolsa de incubação especializada existente na superfície de seus abdomes ou caudas. Esses locais apresentam modificações morfológicas e fisiológicas semelhantes às encontradas nas fêmeas vivíparas.
As estruturas reprodutivas mais complexas são encontradas nas 33 espécies de cavalos-marinhos que também apresentam as alterações fisiológicas reprodutivas mais marcantes. Nessas espécies, as fêmeas transferem seus gametas (ovócitos) ricos em reservas nutritivas (vitelo) para a bolsa de incubação dos machos, onde ocorre a fertilização pelos gametas masculinos.
Nos machos dessas espécies há uma produção muito reduzida de gametas – apenas cerca de 150 células por testículo, o menor valor conhecido entre os peixes. A reduzida competição espermática nessas espécies talvez esteja associada com esse processo, que talvez seja uma adaptação para evitar a fecundação dos ovócitos por mais de um espermatozoide.
Após a fertilização, os zigotos se implantam rapidamente e ocorrem diferenciações e adaptações fisiológicas e morfológicas nos tecidos masculinos associadas com o desenvolvimento embrionário. Há um aumento da vascularização nos locais de implantação embrionária. Também é observada a ocorrência de alterações relacionadas com a osmorregulação, a aeração, a nutrição e a proteção imune dos embriões em desenvolvimento.
Cavalo-marinho grávido no Aquário de Nova York. O período de gestação
dos signatídeos pode ir de 9 a 69 dias, dependendo da temperatura
ambiental (foto: Jaro Nemcok).
A gestação e depois
O período de gestação dos signatídeos possui uma enorme variação, podendo alcançar de 9 a 69 dias, dependendo da temperatura ambiental. Após a gestação, a pseudoplacenta dos machos é eliminada juntamente com os as formas jovens, que passam então a depender somente de si para o desenvolvimento futuro. Não há, portanto, entre os signatídeos qualquer forma de cuidado paternal (ou maternal) da prole.A regulação hormonal da reprodução dos signatídeos depende da prolactina, um hormônio da hipófise que está relacionado com a osmorregulação, com o desenvolvimento, com as respostas imunes e com a reprodução nos vertebrados. Nos signatídeos, o bloqueio da síntese de prolactina causa abortos e a eliminação dos tecidos associados com a reprodução.
O esquema indica a localização e a estrutura interna da bolsa de
incubação de um cavalo-marinho macho antes e durante o desenvolvimento
embrionário (adapatado de Stolting e Wilson, 2007).
Diversas espécies de signatídeos podem ser cultivadas em laboratório com certa facilidade. Por terem tempos de geração curtos (3-12 meses), elevada fecundidade (de 50 a 2 mil filhotes por ninhada) e um genoma haploide pequeno (de 500 milhões a um bilhão de bases nitrogenadas), os cavalos-marinhos e outras espécies de seu grupo podem ser considerados modelos interessantes para pesquisas futuras que poderão esclarecer como ocorre a reprodução do ponto de vista morfológico, fisiológico e genético.
O estudo desses animais pode gerar dados essenciais para a compreensão desse processo em nossa própria espécie. Além disso, esses simpáticos peixes oferecem uma oportunidade para que possamos investigar o processo de seleção sexual e compreender melhor o papel masculino na reprodução.
Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras
Sugestões para leitura
Dzyuba,B., Van Look,K.J., Cliffe,A., Koldewey,H.J., and Holt,W.V. (2006). Effect of parental age and associated size on fecundity, growth and survival in the yellow seahorse Hippocampus kuda. J. Exp. Biol. 209, 3055-3061.
Jones,A.G., Moore,G.I., Kvarnemo,C., Walker,D., and Avise,J.C. (2003). Sympatric speciation as a consequence of male pregnancy in seahorses. Proc. Natl. Acad. Sci. U. S. A 100, 6598-6603.
Ripley,J.L. and Foran,C.M. (2006). Differential parental nutrient allocation in two congeneric pipefish species (Syngnathidae: Syngnathus spp.). J. Exp. Biol. 209, 1112-1121.
Rothchild,I. (2003). The yolkless egg and the evolution of eutherian viviparity. Biol. Reprod. 68, 337-357.
Soares,M.J., Konno,T., and Alam,S.M. (2007). The prolactin family: effectors of pregnancy-dependent adaptations. Trends Endocrinol. Metab 18, 114-121.
Stolting,K.N. and Wilson,A.B. (2007). Male pregnancy in seahorses and pipefish: beyond the mammalian model. Bioessays 29, 884-896.
Van Look,K.J., Dzyuba,B., Cliffe,A., Koldewey,H.J., and Holt,W.V. (2007). Dimorphic sperm and the unlikely route to fertilisation in the yellow seahorse. J. Exp. Biol. 210, 432-437.
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