Arraias invadem rios de São Paulo via lago de
Itaipu e ferem pescadores
Antes, Sete Quedas restringiam espécies à bacia Paraná-Paraguai.
Parentes
dos tubarões, elas já chegaram aos rios Paranapanema e Tietê.
Giovana Girardi
Da ‘Unesp Ciência’
O
G1 publica abaixo reportagem da 6ª edição da
revista “Unesp Ciência”, lançada nesta sexta-feira (5). Você vai
conhecer o trabalho de pesquisadores que mergulham no rio Paraná
para desvendar a ecologia da infestação de arraias que
aproveitaram o lago da hidrelétrica de Itaipu para proliferar e
ocupar outros ambientes, ameaçando banhistas e pescadores.
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Amputação preventiva - Exemplar de
'Potamotrygon motoro' com a cauda mutilada.
Pescadores costumam amputar o animal na expectativa de
reduzir os acidentes, em uma prática conhecida como
'pesca negativa'; o ferimento, no entanto,
prejudica a natação das arraias e uma de suas técnicas
de defesa, que é se enterrar rapidamente (Foto:
Cristiano Burmester / Unesp Ciência ed.6)
Quando a
luz
apagou em boa parte do Brasil em 11 de novembro do ano
passado
, o pescador Alfredo Alves Cruz, de 32 anos, estava a
ponto de desespero em sua casa, com o pé latejando de dor. Mais
cedo ele tinha tomado uma ferroada de arraia quando pescava às
margens do rio Paraná, em Três Lagoas (MS), e naquele momento
tentava, com água quente, aplacar o sofrimento.
Há uma certa ironia da natureza em ele ter se acidentado em um
dia de apagão, visto que o animal que o feriu só estava ali
justamente porque 27 anos antes era inundada uma imensa área no
Estado do Paraná para abastecer a maior usina hidrelétrica do
mundo – Itaipu. As famosas Sete Quedas de Guaíra, que
submergiram em outubro de 1982, historicamente serviram como
barreira que impedia que as arraias, comuns no baixo e médio
Paraná, subissem para o alto rio.
Com o lago criado, esses peixes parentes dos tubarões encontraram
um novo caminho e rapidamente colonizaram uma região que até
então desconhecia sua existência. Há milhões de anos, arraias
marinhas do Caribe se adaptaram para viver nos rios da
Amazônia
. Dali, pelo Mato Grosso, chegaram ao Pantanal e
desceram até a bacia Paraná-Paraguai, onde estavam restritas.
Agora, pelo rio Paraná elas já chegaram até Ilha Solteira, a
mais de 350 km do ponto inicial de dispersão (Foz do Iguaçu). E
também alcançaram os rios Paranapanema e Tietê.
Quinze dias depois do acidente, quando visitamos a região, Cruz
ainda reclamava do pé, que, se não chegara a necrosar com o
veneno – a água quente amenizou o problema –, infeccionou pela
ação de bactérias. O pescador só pensava que nunca mais queria
ver aquele bicho pela frente.
Mas é melhor ele não contar com isso se quiser evitar um novo
sofrimento. Afinal, não se deparar mais com o peixe naquela
região é uma possibilidade altamente remota, alertam os
pesquisadores Vidal Haddad Jr., dermatologista da Faculdade de
Medicina da Unesp, câmpus de Botucatu, e Domingos Garrone Neto,
biólogo que completou doutorado sobre os animais em 2009 na
instituição e agora inicia o pós-doutorado na mesma área.
“O rio Paraná está coalhado de arraias, elas têm alimento de
qualidade, não têm predadores naturais na região e os
pescadores, por causa dos acidentes, têm preconceito e não comem
sua carne. A tendência é que essa expansão só continue”, afirma
Haddad.
Acompanhamos a dupla a Três Lagoas em uma de suas visitas
regulares para monitorar a população de arraias e o impacto que
essa invasão biológica vem tendo na saúde humana. A cidade
sul-mato-grossense fica em frente a Castilho (SP), na outra
margem do rio Paraná, exatamente onde foi construída a Usina
Hidrelétrica Engenheiro Souza Dias (Jupiá). São seis horas de
carro a partir de São Paulo – que viram cinco após atravessarmos
a ponte sobre o rio, por conta do fuso horário.
Enquanto Garrone investiga a ecologia do animal e a história
natural de sua expansão, Haddad trabalha com educação ambiental,
prevenção, tratamento e pesquisas em torno do veneno. Eles
escolheram a cidade como base dos estudos por contarem ali com
uma unidade da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, que
os apoia nas pesquisas de campo e na logística de laboratórios.
Risco do desconhecido
A relação entre arraias e seres humanos nunca foi muito boa. O
animal é frequentemente associado a ferimentos de pescadores e
ribeirinhos, principalmente na região Norte do país, onde esses
peixes vivem há milhares de anos e são bastante comuns – e a
população está mais do que acostumada com eles. É de se imaginar
o que aconteceria com comunidades que nunca tinham visto o bicho
antes. Foi o que levou Haddad há cerca de dez anos a começar a
prestar atenção nas cidades com praias fluviais no rio Paraná.
Um levantamento feito por Itaipu logo após a submersão das Sete
Quedas mostrara que as arraias tinham subido. Antes da formação
do lago, a fauna aquática da região de Foz do Iguaçu tinha 113
espécies de peixes, depois do alagamento, 76 novas espécies
surgiram no local, entre elas três de arraia. Mas não foi feito
nenhum monitoramento posterior para saber se elas estavam se
movendo e para onde.
“Naquela época ouvi os primeiros relatos sobre a ocorrência
desses animais no Estado de São Paulo. Fiz coletas em Presidente
Epitácio com a ajuda de pescadores, ao mesmo tempo em que
comecei a procurar por acidentes. O local tinha muitas arraias,
o que nos levou a crer que o rio Paraná estava todo colonizado,
pelo menos até Epitácio. Alertei em 1999 que a expansão deveria
continuar por São Paulo, entrando pelo rio Tietê, e é o que está
acontecendo agora”, afirma.
Apesar de não serem agressivas e não atacarem as pessoas, as
arraias reagem com uma chicotada da cauda, onde fica o ferrão,
quando alguém pisa ou esbarra nelas.
No ano passado, o Instituto Butantan estimou que os acidentes com
esses peixes estão entre os mais comuns entre aqueles que
envolvem animais peçonhentos no Brasil, principalmente na região
Norte.
Não agressoras - Arraias se defendem com o ferrão
(Foto: Cristiano Burmester / Unesp Ciência, ed.6)
Na região do Alto Paraná ainda não há estatística sobre o número
de acidentes, mas a percepção dos pesquisadores é que eles vêm
crescendo. De fato, quando Haddad avaliava o ferimento de
Alfredo Cruz, três outros pescadores – num grupinho de cinco –
mostravam as cicatrizes de ferroadas antigas. “Por enquanto,
pelo menos, parece que os acidentes estão restritos aos
pescadores. O que preocupa é na hora que começarem a acontecer
nas prainhas de lazer”, afirma o dermatologista.
Para tentar antever os riscos que poderiam decorrer dessa
interação arraias-gente, Garrone Neto começou a investigar os
animais da região. Ele já conhecia o impacto que os peixes têm
nas populações ribeirinhas da Amazônia e, assim como Haddad,
imaginou que a situação tendia a ser pior num local
desprevenido. “Vi no Norte do país que os acidentes eram
frequentes e, por acometerem quase sempre os membros inferiores
das vítimas, eram de grande interesse ocupacional e também de
saúde pública.”
Isso aliado ao fato de haver poucos estudos sobre a ecologia das
arraias – ninguém ainda as havia observado em seu habitat – foi
o motivo que o pesquisador precisava. A partir de 2004 ele
começou a “cair nas águas” da região do Alto Paraná para
realizar os primeiros estudos subaquáticos conhecidos sobre
esses animais. O objetivo era descobrir como eles vivem, se
reproduzem, se alimentam etc. Quando estivemos em Três Lagoas
ele contou que boa parte dessas questões já foi respondida com
os mergulhos, coletas e análises de conteúdo estomacal, mas
algumas perguntas dependem agora da próxima etapa da pesquisa,
que envolve o uso de telemetria – a inserção de chips nos peixes
para que seja possível acompanhar a sua locomoção.
O Sol já estava alto quando entramos no barco de Marcos Teixeira
da Silveira, o Marquinho, pescador de 35 anos que acompanha
Garrone desde o início da pesquisa.
Equipamentos de mergulho e todas as “tralhas” para a pesquisa
costumam lotar a embarcação, mas nesse dia vamos apenas
observar. O pesquisador submeteu o projeto de pós-doutorado à
Fapesp e ainda espera a liberação da verba para compra do
equipamento de telemetria.
Navegação via eclusa
O rio corre calmo na altura de Jupiá e não há pescadores à vista,
por conta do período de defeso para a reprodução dos peixes. A
barragem imponente, no entanto, nos lembra por que estamos lá.
Depois que as arraias ganharam um mundo novo para colonizar com
a submersão das Sete Quedas, elas contaram com a ajuda de outras
interferências humanas para chegar tão longe rio acima e
tributários.
Usinas construídas ao longo da bacia do Paraná, como a de Porto
Primavera (em Rosana, SP) e a própria Jupiá, facilitaram o
trânsito dos peixes através das eclusas construídas para
possibilitar o transporte hidroviário. Quando navios e barcos
transpõem os desníveis dos rios, as arraias acabam aproveitando
a carona. A navegação pelo Tietê também funciona do mesmo modo
(quem já fez excursão para Barra Bonita deve se lembrar), o que
pode permitir que as arraias entrem cada vez mais para o centro
do Estado de São Paulo, onde há muitas praias.
“Queremos descobrir também o que deve acontecer acima de Ilha
Solteira. Lá elas já chegaram, mas a usina não tem eclusa,
então, em teoria, é o fim da linha”, afirma Garrone. Mas há uma
brecha. As turbinas ligadas sugam os animais que estão no rio,
então, de tempos em tempos os funcionários “salvam” os que
ficaram presos nelas. “Mas pode ocorrer de alguém jogar uma
arraia ou outra para cima, em vez de para baixo, favorecendo a
transposição da barragem”, complementa.
“Essa história que estamos documentando há cinco anos é o único
caso conhecido no mundo de elasmobrânquios invasores, ou seja,
de tubarões ou arraias que chegaram a um lugar onde eles não
ocorriam originalmente”, explica. Tais observações vêm sendo
divulgadas por Haddad e Garrone já há alguns anos em revistas
como "Biota Neotropica" e o "Boletim da Sociedade
Brasileira de Ictiologia".
No artigo mais recente, que deve sair em breve na "Revista
da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical", eles
escrevem: “Pelas arraias estarem colonizando áreas densamente
povoadas e ampliando sua área de distribuição a cada ano, é de
se esperar que sua interação negativa com humanos se
intensifique, provocando alterações importantes no perfil
epidemiológico dos acidentes por animais peçonhentos ocorridos
no sudeste brasileiro.”
De acordo com relatos obtidos pela dupla com ribeirinhos de todo
o Alto Rio Paraná, as arraias começaram a se instalar na área em
1993. Marquinho conta que um primo seu foi um dos primeiros a
“conhecer” a novidade em Três Lagoas em meados daquela década.
“Ele mergulhou de barriga e tomou a ferroada. Ninguém sabia que
bicho era aquele. Ele veio gritando de dor e quando chegou no
barraco, apagou”, lembra.
Hoje Marquinho sabe muito bem como são as arraias, distinguindo
inclusive as espécies, como pudemos perceber logo que paramos o
barco para, enfim, entrar no Paraná. Enquanto Garrone e o
fotógrafo Cristiano Burmester se preparavam para o mergulho, o
pescador caiu na água com uma rede, flutuou um pouco com a
cabeça submersa para logo em seguida afundar completamente.
“Agora ele só volta com uma arraia na mão”, comenta Haddad, o que
não leva nem 30 segundos para acontecer. Ele sobe à tona com um
exemplar de
Potamotrygon falkneri, uma das duas
espécies observadas na região (a terceira que subiu para o Alto
Paraná ficou restrita ao Parque Nacional de Ilha Grande).
Trata-se de um jovem macho, com um disco de cerca de 25
centímetros de diâmetro.
Coalhado de arraias - Marquinho mostra um espécime
macho de 'P. motoro' retirado do fundo do
rio apenas 20 segundos após o mergulho
(crédito: Cristiano Burmester / Unesp Ciência, ed.
6)
Com um alicate Domingos segura o ferrão e com uma esponja segura
o peixe por baixo para fora d’água. Na mão do pesquisador, o
belo animal provoca admiração. “O ferrão é retrosserrilhado,
entra e sai rasgando a pele. Ele é recoberto por um muco rico em
células glandulares que têm toxinas. Além da estrutura rígida
que compõe o ferrão, é isso que faz o estrago quando entra”,
explica Domingos.
Na sequência Marquinho trouxe outro macho, dessa vez da espécie
Potamotrygon motoro. Com bolinhas alaranjadas, ela
é mais bonita que a anterior – e esse exemplar específico é
ainda mais perigoso, tem dois ferrões. “Se tomar uma dessas, vai
ver estrelas”, comenta Haddad. Ele explica que em caso de
acidente, a recomendação é jogar água quente não escaldante.
Leia também:
Arraias
de água doce estão entre animais mais perigosos da
Amazônia
A descoberta de por que isso funciona é um dos resultados do
trabalho na região. “Em todo o mundo recomendava-se o uso da
água quente
[nos acidentes com as arraias marinhas]
acreditando-se que ela desnaturaria o veneno”, diz. “Mas a gente
provou que não. Injetando o veneno em animais de experimentação,
percebemos que os vasos sanguíneos se contraem, daí a dor e a
necrose. A água quente faz uma vasodilatação, por isso que ajuda
e alivia a dor”, afirma o dermatologista.
‘24 horas’ dentro d’água
Para conhecer os hábitos do animal, e assim poder informar a
população sobre como se prevenir, Domingos passou muitas horas
submerso ao longo de cinco anos de pesquisas. “Queria saber, por
exemplo, em qual horário do dia elas são mais ativas”, conta.
“Mas para isso precisaria ficar 24 horas dentro d’água, o que é
impossível.” Ele então dividiu um dia em vários. No primeiro
mergulhava das 5h às 8h e depois das 16h às 20h. No dia
seguinte, ficava das 9h ao meio-dia, e das 21h à meia-noite.
Cada dia um horário diferente para tentar cobrir o dia inteiro.
“Vi que elas nadam, vão à superfície, se deslocam junto à
vegetação, mas o hábito é predominantemente bentônico. Elas
passam quase todo o tempo em associação com o substrato”,
explica. Elas ficam escondidas, só com os olhinhos para fora. E
é aí que mora o perigo.
“É um animal que confia demais na camuflagem e por isso acaba
sendo pisoteado. Ele acha que as pessoas não vão machucá-lo
porque não o estão vendo ali, mas é por isso que elas às vezes
esbarram nele. Quando as arraias sentem uma estocada no dorso
têm uma reação igual a quando tomamos uma pisada no pé: tirar
rápido. Ela ferroa e vai embora. Não ataca ninguém, é defesa.”
Por isso um cuidado ao entrar num rio que tenha arraia é
arrastar os pés no fundo. Ela percebe o movimento e vai embora.
“A prevenção é fácil, já controlar a população é mais difícil.
Ninguém pesca, ninguém come”, diz. E se conta com bastante
comida e água de boa qualidade, ela só tende a crescer, e os
indivíduos de borda, mais jovens, saem à procura de novos
ambientes. Com a telemetria, que Domingos espera começar a
implantar nos próximos meses, será possível descobrir quantos
animais têm de existir numa população para ela começar a se
expandir. “Também não sabemos quanto tempo as arraias vivem,
quanto podem se deslocar ao longo da vida e com qual velocidade.
Esperamos que esses dados possam trazer dicas de como
controlá-las. Porque uma ferroada dessas é de perder a noção de
dor.”
Copyright:
Unesp Ciência
“Unesp Ciência” é uma publicação da Universidade Estadual
Paulista que traz reportagens sobre os grandes temas da
ciência mundial e nacional e sobre as pesquisas mais
relevantes que estão sendo realizadas na instituição, em
todas as áreas do conhecimento. Leia reportagens anteriores
publicadas pelo G1:
http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL1516817-5603,00-ARRAIAS+INVADEM+RIOS+DE+SAO+PAULO+VIA+LAGO+DE+ITAIPU+E+FEREM+PESCADORES.html