quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Micróbios sem DNA?

Micróbios sem DNA?

Sergio Pena explica como age o príon – proteína infecciosa por trás do mal da vaca louca e de outras doenças degenerativas – e mostra o que ele tem em comum com uma entidade química postulada em uma obra de ficção científica dos anos 1960.
Por: Sergio Danilo Pena
Publicado em 12/11/2010 | Atualizado em 12/11/2010

Representação artística da estrutura tridimensional de resíduos do príon, agente infeccioso puramente proteico – portanto, sem DNA – por trás de várias doenças neurodegenerativas (foto: Wikimedia Commons – CC 3.0 BY-SA). 


Há duas semanas o presidente dos Estados Unidos Barack Obama anunciou os ganhadores da Medalha Nacional da Ciência, a maior honraria outorgada a cientistas naquele país. Dentre os agraciados deste ano está Stanley B. Prusiner (1942 -), que ganhou também o Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1997 por sua descoberta dos príons, uma nova classe de agentes infecciosos compostos apenas de proteínas.
Como eu já tinha vagos planos de abordar a questão dos príons algum dia na Deriva Genética, vi que o momento ideal chegara. Mas decidi abordar os príons de forma lenta, recapitulando a minha própria trajetória na compreensão dessas bizarras proteínas infecciosas, agentes da encefalopatia espongiforme bovina (popularmente conhecida como “doença da vaca louca”) e de várias doenças neurogenerativas humanas.


Kurt Vonnegut Jr.


Retornemos à década de 1970, quando um dos autores mais lidos nos campi universitários norte-americanos era Kurt Vonnegut Jr. (1922-2007). Ainda fazendo meu doutorado no Canadá, tive a oportunidade de ler e me encantar com seu livro Cat’s Cradle [“Cama de gato”], que havia sido publicado em 1962.
O livro tem um enredo complexo que gira em torno de uma entidade química chamada “gelo-9”. Este tem uma estrutura cristalina muito mais estável do que o gelo normal, mas derrete a 45,8ºC, em vez de  0ºC, como é usual.
Assim, caso um pequeno pedaço de gelo-9 entrasse em contato  com a água do oceano, ele iria agir instrutivamente como uma “semente” de cristal. Em pouco tempo, toda a água do oceano iria se congelar na forma cristalina estável, causando uma catástrofe global de medonhas proporções.


Canibalismo e doenças degenerativas

No cenário das terras altas orientais da Nova-Guiné, um grupo primitivo – os Fore – começou a apresentar na década de 1950 uma doença neurodegenerativa chamada por eles de kuru, que quer dizer tremor.
A doença tinha um padrão claramente familiar, com transmissão de geração em geração. Por isso, a primeira hipótese dos pesquisadores que se depararam com ela foi de que se tratava de um problema genético mendeliano. A tribo foi visitada pelo antropólogo Daniel Carleton Gajdusek (1923-2008), que iniciou uma investigação dos costumes do povo Fore, que incluíam o canibalismo ritual de membros mortos da comunidade.
Equipes médicas visitaram a região e observaram a semelhança dos sintomas e das alterações neuropatológicas do kuru com uma enfermidade rara chamada doença de Creutzfeld-Jakob, que acomete pessoas idosas. A diferença é que o kuru frequentemente afetava crianças e adolescentes, e não apenas adultos.

 A imagem mostra quatro mulheres afetadas com uma forma avançada de kuru, necessitando de estacas de madeira para se manterem de pé. As três meninas sentadas também são afetadas (foto: Daniel Carleton Gajduzek / Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 363: 3636–3643, 2008).

 Mais tarde Gajdusek observou também a similaridade do kuru com uma doença infecciosa transmissível de ovelhas conhecida por seu nome em inglês, scrapie (ou paraplexia enzoótica dos ovinos, na denominação técnica).

Estimulado por tais observações, Gajdusek demonstrou experimentalmente a transmissão laboratorial do Kuru para primatas usando injeções cerebrais com extratos obtidos do sistema nervoso central de pacientes vitimados por essa enfermidade.
A doença foi então caracterizada como infectocontagiosa, com uma cadeia epidemiológica dependente do canibalismo. Quando os Fore deixaram de praticar o ritual, a doença desapareceu entre eles.
Gajdusek descreveu o vírus do kuru como atípico e de ação lenta. Pelo seu trabalho, ele recebeu o Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1976.

Proteínas normais e patogênicas

Em 1972, Stanley Prusiner, um neurologista na Universidade da Califórnia em São Francisco (EUA), interessou-se pela doença Creutzfeldt-Jakob,  depois que um de seus pacientes foi vitimado por ela. Sabendo do trabalho de Gajdusek com o kuru, Prusiner dedicou-se a identificar o “vírus”, usando o método de infecção por transferência de humanos a animais.
Uma década depois, ele conseguiu purificar no cérebro de hamsters o agente infeccioso. Para surpresa de Prusiner, o mesmo mostrou-se constituído de uma única proteína e não possuía DNA! O agente foi chamado de príon, um acrônimo cunhado pelo pesquisador a partir da expressão PRotein Infection ONly (‘infecção por proteína apenas’, em português).

Sendo o príon apenas uma proteína, como seria ele geneticamente codificado? Usando sondas de DNA, Prusiner demonstrou que todos os mamíferos, inclusive os humanos, possuíam o gene do príon em seu genoma.
Mas como, então, explicar a capacidade infecciosa de uma proteína tão facilmente encontrável?
A solução veio quando ele verificou que a proteína, denominada PrP, era capaz de se enovelar em duas conformações distintas – a celular normal (PrPc) e a patogênica (PrPSc), mais estável, que se precipitava nos neurônios e causava a doença.
Descobriu-se então que, quando a proteína normal PrPc entrava em contato com o príon PrPSc, ela mudava de conformação e se tornava patogênica. Assim, o mecanismo infeccioso do príon é instrutivo – exatamente o modus operandi que Vonnegut havia postulado para o gelo-9! O príon era um gelo-9 de proteínas!
A partir daí, acumularam-se inúmeras evidências que demonstraram, definitivamente, a ausência de DNA e a natureza puramente proteica dos príons.

A mais importante delas foi obtida em 1992, quando foi demonstrado que camundongos que haviam sofrido deleção (knock-out) do gene normal da PrPc se tornavam resistentes aos príons infecciosos.


Entretanto, se o gene era reintroduzido, a susceptibilidade se restaurava. Curiosamente, os camundongos sem o gene da PrPc eram saudáveis, mostrando que a proteína não é indispensável para a vida normal.

Esperteza

Em 1994, eu participava de um simpósio sobre biologia molecular e doenças humanas em Miami quando, ao entrar no auditório, me deparei com Stanley Prusiner, sentado sozinho.
Achando-me muito esperto, me dirigi a ele e perguntei se ele conhecia o livro Cat’s Cradle de Kurt Vonnegut e se sabia da similaridade entre o gelo-9 e os príons. Ele olhou para mim espantado e disparou: “É claro!”. Tomei uma lição, mas pelo menos fiquei com uma estória para contar...

 A flor ‘Paris japonica’ tem o maior genoma conhecido, com 150 bilhões de nucleotídeos (foto: Wikimedia Commons).

A antítese do príon

O príon é um agente infeccioso que não contém DNA – consequentemente, não tem genoma! Poderíamos indagar, então, qual seria sua antítese – o organismo com o maior genoma conhecido?

No mês passado, pesquisadores descobriram uma flor japonesa bastante rara chamada Paris japonica. Ela tem um genoma de 150 bilhões de pares de base, 50 vezes maior que o genoma humano. Não deixa de ter um certo toque poético o fato de o maior genoma ser de uma flor!

Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
 http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/deriva-genetica/microbios-sem-dna

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