domingo, 1 de agosto de 2010

Inteligência cultural

Inteligência cultural

O que torna o homem um ser social? Roberto Lent comenta um estudo que comparou crianças e símios para descobrir, afinal, com que grau de cognição social nascem os homens. Os resultados indicam que nascemos propensos à cooperação social – como a sociedade nos moldará depois já é outra história.
Por: Roberto Lent
| Atualizado em 30/07/2010

 Uma criança ajuda a outra a ficar de pé: espírito de solidariedade inato ou aprendido? Testes de cognição social com crianças e símios indicam que as capacidades cognitivas para a cultura e a vida social nascem conosco (foto: Mor Naaman – CC BY-NC 2.0). 

Faça você a seguinte brincadeira: deixe cair ‘acidentalmente’ um objeto no chão, e tente alcançá-lo simulando dificuldade. Uma criança de 18 meses que esteja por perto engatinhará até o objeto para pegá-lo e devolvê-lo a você.
Esse é um dos testes simples utilizado pela equipe do antropólogo Michael Tomasello, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, para avaliar uma pergunta antiga que ele mesmo formula da seguinte forma: as pessoas são naturalmente cooperativas e a sociedade as corrompe, ou são naturalmente egoístas e a sociedade as corrige?
Assisti a uma conferência de Tomasello há poucas semanas em Amsterdã, na qual ele relatou seus experimentos sobre a hipótese da ‘inteligência cultural’, que defende para explicar a extraordinária capacidade humana para uma cognição social.
Na ocasião, mostrou alguns vídeos sobre os experimentos com crianças e com chimpanzés, que o leitor pode conferir aqui.


Na foto à esquerda, o experimentador deixa cair um objeto, e a criança o devolve. À direita, a experimentadora tem as mãos ocupadas para abrir o armário, e a criança a ajuda. Modificado de Warneken e Tomasello, 2009.

Inteligência e cognição social

É ponto pacífico que os seres humanos são dotados de capacidades cognitivas superiores em relação aos símios, seus parentes mais próximos na evolução. Basta lembrar a linguagem, o simbolismo matemático e o raciocínio científico, para citar apenas algumas.
Tudo indica que essa superioridade esteja relacionada ao grande cérebro que temos, três vezes maior que o dos chimpanzés, e dotado também de três vezes mais neurônios.
A questão central é saber de que modo a estrutura do cérebro e suas estratégias funcionais adquiriram capacidades cognitivas tão poderosas e únicas entre os seres vivos.

Uma hipótese bem aceita é a da ‘inteligência geral’. Dizem os seus adeptos que os cérebros maiores permitiram realizarmos operações cognitivas de todo tipo, com maior eficiência que outras espécies.
Teríamos maior memória, aprendizagem mais rápida, percepção mais ágil (inclusive do estado mental de outras pessoas), planejamento de longo prazo. Dotado dessas potencialidades genéricas, o ambiente faria a diferenciação individual, lapidando cada um diferentemente do outro.
Tomasello defende a hipótese da ‘inteligência cultural’, cuja premissa é que a natureza nos dotou especificamente de uma capacidade superior – a cognição social – que nos oferece um grau elevado de cooperação interindividual, e a construção de redes sociais nunca conseguida pelos símios ou qualquer outra espécie, mesmo aquelas que apresentam uma organização populacional que se pode chamar de social. Outras capacidades humanas seriam semelhantes às dos símios, apenas potencializadas pela cultura e a vida em sociedade.

O teste das inteligências

Se a hipótese da ‘inteligência cultural’ for verdadeira, existiria uma idade em humanos, durante o seu desenvolvimento precoce (antes que a cultura os influencie fortemente), em que a cognição física (relações de espaço, quantidade e causalidade entre fenômenos) seria semelhante à dos grandes símios. Nessa mesma idade, porém, a previsão é que a nossa cognição social seja nitidamente superior à dos chimpanzés e orangotangos.
Se for correta a hipótese da ‘inteligência geral’, crianças seriam superiores aos símios nos testes de cognição física também.

A equipe de Tomasello elaborou uma bateria de testes que foram aplicados a 106 chimpanzés de idades entre 3 e 21 anos, 32 orangotangos de 3 a 10 anos e 105 crianças de cerca de 2 anos e meio. Em todos os casos, metade dos indivíduos era do sexo masculino, metade do sexo feminino.
Os testes foram divididos em dois grandes grupos. Os de cognição física lidam com objetos inanimados e suas relações de causa e efeito no espaço e no tempo. Por exemplo: localizar um objeto desejado, escondido pelo experimentador; ou diferenciar uma caixa com duas bolinhas de uma caixa idêntica com cinco bolinhas.
Já os testes de cognição social consideram as interações entre indivíduos, suas ações intencionais, percepções e conhecimento. Nesse caso, o sujeito aprende e imita uma ação observando o experimentador realizá-la; ou tenta encontrar um objeto seguindo a direção do olhar do experimentador; ou interage com ele objetivando ajudá-lo.

 O gráfico à esquerda mostra que as crianças acertaram os testes de cognição física tanto quanto os chimpanzés, e o da direita mostra o contrário para os testes de cognição social: as crianças foram bem melhores! Modificado de Herrmann e cols., 2007.
 
Cultura e vida em sociedade é da natureza humana

Os resultados obtidos pela equipe de Tomasello comprovaram a sua hipótese da ‘inteligência cultural’. Nos testes de cognição física, as crianças e os chimpanzés não diferiram estatisticamente, mas ambos tiveram desempenho melhor que os orangotangos. Nos testes de cognição social, entretanto, as crianças mostraram-se muito superiores aos símios, que por sua vez não diferiram entre si.  

Dentre os testes de cognição física, não houve diferença entre as três espécies no quesito de avaliação quantitativa: crianças e símios são igualmente capazes de estimar a quantidade de objetos.
Nos quesitos de espaço e de causalidade entre fenômenos, crianças e chimpanzés foram iguais, mas os orangotangos destoaram para pior. Já nos testes de cognição social as crianças venceram a parada em todos os quesitos, e os símios não diferiram entre si.
Tudo indica, então, que a cultura e a vida social representam capacidades cognitivas que nascem conosco, possivelmente derivadas do nosso grande cérebro povoado por quase 90 bilhões de neurônios. Possivelmente, a aquisição dessa capacidade social se deu em algum momento entre um e dois milhões de anos atrás, quando a evolução foi selecionando cérebros dotados de mais que os 40 bilhões estimados para os australopitecos, nossos ancestrais africanos.
O processo seletivo continuou até chegar ao gênero Homo, que gradualmente atingiu os nossos atuais 90 bilhões e adquiriu novas capacidades: a comunicação entre indivíduos por meio da linguagem, a aprendizagem social de regras de conduta coletiva voltadas para a cooperação, a percepção do estado mental dos outros e de suas intenções e emoções (‘teoria da mente’) e o planejamento de ações futuras de longo prazo.

Assim, nascemos propensos à cooperação social: essa é a nossa força. Provavelmente, os poucos genes que nos diferenciam dos chimpanzés são responsáveis pelos circuitos neurais que coordenam as funções relacionadas à vida social.
Sua expressão, entretanto, deve ser modulada pela sociedade que nós próprios construímos. A sociedade nos eleva, ou ela mesma nos corrompe.
Toda força aos cientistas sociais, para que nos indiquem como construir sociedades melhores...

Roberto LentInstituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Um comentário:

Srtª Alynna disse...

Isso só a sábia e intrigante ciência explica tamanho grau de intelecto que os chimpanzés possui e por incrível que pareça comparado a um de um ser humano.