Micróbios sem DNA?
Sergio Pena explica como age o príon – proteína infecciosa
por trás do mal da vaca louca e de outras doenças degenerativas – e
mostra o que ele tem em comum com uma entidade química postulada em uma
obra de ficção científica dos anos 1960.
Por:
Sergio Danilo Pena
Publicado em 12/11/2010
|
Atualizado em 12/11/2010
Representação
artística da estrutura tridimensional de resíduos do príon, agente
infeccioso puramente proteico – portanto, sem DNA – por trás de várias
doenças neurodegenerativas (foto: Wikimedia Commons – CC 3.0 BY-SA).
Há duas semanas o presidente dos Estados Unidos Barack Obama anunciou os ganhadores da
Medalha Nacional da Ciência,
a maior honraria outorgada a cientistas naquele país. Dentre os
agraciados deste ano está Stanley B. Prusiner (1942 -), que ganhou
também o
Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1997 por sua descoberta dos príons, uma nova classe de agentes infecciosos compostos apenas de proteínas.
Como eu já tinha vagos planos de abordar a questão dos príons algum dia na
Deriva Genética,
vi que o momento ideal chegara. Mas decidi abordar os príons de forma
lenta, recapitulando a minha própria trajetória na compreensão dessas
bizarras proteínas infecciosas, agentes da encefalopatia espongiforme
bovina (popularmente conhecida como “doença da vaca louca”) e de várias
doenças neurogenerativas humanas.
Kurt Vonnegut Jr.
Retornemos à década de 1970, quando um dos autores mais lidos nos
campi universitários norte-americanos era Kurt Vonnegut Jr. (1922-2007).
Ainda fazendo meu doutorado no Canadá, tive a oportunidade de ler e me
encantar com seu livro
Cat’s Cradle [“Cama de gato”], que havia sido publicado em 1962.
O livro tem um enredo complexo que gira em torno de uma entidade
química chamada “gelo-9”. Este tem uma estrutura cristalina muito mais
estável do que o gelo normal, mas derrete a 45,8
ºC, em vez de 0
ºC, como é usual.
Assim, caso um pequeno pedaço de gelo-9 entrasse em contato com a
água do oceano, ele iria agir instrutivamente como uma “semente” de
cristal. Em pouco tempo, toda a água do oceano iria se congelar na forma
cristalina estável, causando uma catástrofe global de medonhas
proporções.
Canibalismo e doenças degenerativas
No cenário das terras altas orientais da Nova-Guiné, um grupo
primitivo – os Fore – começou a apresentar na década de 1950 uma doença
neurodegenerativa chamada por eles de
kuru, que quer dizer tremor.
A doença tinha um padrão claramente familiar, com transmissão de
geração em geração. Por isso, a primeira hipótese dos pesquisadores que
se depararam com ela foi de que se tratava de um problema genético
mendeliano. A tribo foi visitada pelo antropólogo Daniel Carleton
Gajdusek (1923-2008), que iniciou uma investigação dos costumes do povo
Fore, que incluíam o canibalismo ritual de membros mortos da comunidade.
Equipes médicas visitaram a região e observaram a semelhança dos
sintomas e das alterações neuropatológicas do kuru com uma enfermidade
rara chamada doença de Creutzfeld-Jakob, que acomete pessoas idosas. A
diferença é que o kuru frequentemente afetava crianças e adolescentes, e
não apenas adultos.
A imagem mostra quatro mulheres afetadas com uma forma avançada de kuru,
necessitando de estacas de madeira para se manterem de pé. As três
meninas sentadas também são afetadas (foto: Daniel Carleton Gajduzek /
Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 363: 3636–3643, 2008).
Mais tarde Gajdusek observou também a similaridade do kuru com uma
doença infecciosa transmissível de ovelhas conhecida por seu nome em
inglês, scrapie (ou paraplexia enzoótica dos ovinos, na denominação
técnica).
Estimulado por tais observações, Gajdusek demonstrou
experimentalmente a transmissão laboratorial do Kuru para primatas
usando injeções cerebrais com extratos obtidos do sistema nervoso
central de pacientes vitimados por essa enfermidade.
A doença foi então caracterizada como infectocontagiosa, com uma
cadeia epidemiológica dependente do canibalismo. Quando os Fore deixaram
de praticar o ritual, a doença desapareceu entre eles.
Gajdusek descreveu o vírus do kuru como atípico e de ação lenta. Pelo seu trabalho, ele recebeu o
Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1976.
Proteínas normais e patogênicas
Em 1972, Stanley Prusiner, um neurologista na Universidade da
Califórnia em São Francisco (EUA), interessou-se pela doença
Creutzfeldt-Jakob, depois que um de seus pacientes foi vitimado por
ela. Sabendo do trabalho de Gajdusek com o kuru, Prusiner dedicou-se a
identificar o “vírus”, usando o método de infecção por transferência de
humanos a animais.
Uma década depois, ele conseguiu purificar no cérebro de hamsters o
agente infeccioso. Para surpresa de Prusiner, o mesmo mostrou-se
constituído de uma única proteína e não possuía DNA! O agente foi
chamado de príon, um acrônimo cunhado pelo pesquisador a partir da
expressão PRotein Infection ONly (‘infecção por proteína apenas’, em
português).
Sendo o príon apenas uma proteína, como seria ele geneticamente
codificado? Usando sondas de DNA, Prusiner demonstrou que todos os
mamíferos, inclusive os humanos, possuíam o gene do príon em seu genoma.
Mas como, então, explicar a capacidade infecciosa de uma proteína tão facilmente encontrável?
A solução veio quando ele verificou que a proteína, denominada PrP,
era capaz de se enovelar em duas conformações distintas – a celular
normal (PrP
c) e a patogênica (PrP
Sc), mais estável, que se precipitava nos neurônios e causava a doença.
Descobriu-se então que, quando a proteína normal PrP
c entrava em contato com o príon PrP
Sc, ela mudava de conformação e se tornava patogênica. Assim, o mecanismo infeccioso do príon é instrutivo – exatamente o
modus operandi que Vonnegut havia postulado para o gelo-9! O príon era um gelo-9 de proteínas!
A partir daí, acumularam-se inúmeras evidências que demonstraram,
definitivamente, a ausência de DNA e a natureza puramente proteica dos
príons.
A mais importante delas foi obtida em 1992, quando foi demonstrado que camundongos que haviam sofrido deleção (
knock-out) do gene normal da PrP
c se tornavam resistentes aos príons infecciosos.
Entretanto, se o gene era reintroduzido, a susceptibilidade se restaurava. Curiosamente, os camundongos sem o gene da PrP
c eram saudáveis, mostrando que a proteína não é indispensável para a vida normal.
Esperteza
Em 1994, eu participava de um simpósio sobre biologia molecular e
doenças humanas em Miami quando, ao entrar no auditório, me deparei com
Stanley Prusiner, sentado sozinho.
Achando-me muito esperto, me dirigi a ele e perguntei se ele conhecia o livro
Cat’s Cradle
de Kurt Vonnegut e se sabia da similaridade entre o gelo-9 e os príons.
Ele olhou para mim espantado e disparou: “É claro!”. Tomei uma lição,
mas pelo menos fiquei com uma estória para contar...
A flor ‘Paris japonica’ tem o maior genoma conhecido, com 150 bilhões de nucleotídeos (foto: Wikimedia Commons).
A antítese do príon
O príon é um agente infeccioso que não contém DNA – consequentemente,
não tem genoma! Poderíamos indagar, então, qual seria sua antítese – o
organismo com o maior genoma conhecido?
No mês passado, pesquisadores descobriram uma flor japonesa bastante rara chamada
Paris japonica.
Ela tem um genoma de 150 bilhões de pares de base, 50 vezes maior que o
genoma humano. Não deixa de ter um certo toque poético o fato de o
maior genoma ser de uma flor!
Sergio Danilo PenaDepartamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/deriva-genetica/microbios-sem-dna