Nem todo vivente é pessoa
Que propriedade biológica define a existência humana?
Motivado por uma tese de doutorado em filosofia, Sergio Pena volta a um
artigo de 1986 no qual examinou essa questão e defende a reforma do
Código Penal para descriminalizar o aborto terapêutico.
Por: Sergio Danilo Pena
Publicado em 10/09/2010
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Atualizado em 10/09/2010
Estudos anatômicos do feto no útero feitos por Leonardo Da Vinci (1452–1519). Foto: Luc Viatour.
Recentemente, fui convidado para ser um dos examinadores de uma tese
de doutorado em filosofia. Fiquei encantado com a ideia. Primeiro porque
senti que este convite parecia sacramentar o meu ideal de
transdisciplinaridade. Segundo, porque eu teria a oportunidade de
observar a filosofia acadêmica funcionando em tempo real.
A tese – muito boa, diga-se de passagem – tinha nada menos que 349
páginas de texto, sem qualquer figura ou tabela. Literalmente um prato
cheio! Seu objetivo era discutir a ética do uso de embriões humanos para
a produção de células-tronco embrionárias e também a seleção genética
de embriões humanos para fins reprodutivos.
Em um dado momento, o jovem filósofo autor da tese afirma que “não é
óbvio que ‘ser humano’ sempre seja equivalente a ‘pessoa’ ou ‘indivíduo’
(entendido como pessoa ou cidadão)”.
À procura do tempo perdido
Como a
madeleine de
Proust, essa sentença da tese me transportou ao passado, especificamente ao ano de 1986.
Naquela época, eu havia há pouco retornado ao Brasil, após quase 12
anos no exterior, os quatro últimos como professor da Universidade
McGill em Montreal, no Canadá. Aos 38 anos, recém-aprovado em concurso
para professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
eu estava cheio do entusiasmo reformista.
Além da minha associação com a UFMG, eu havia também fundado, em
1982, um núcleo de genética médica no Instituto Hilton Rocha, em Belo
Horizonte. Entre as novidades que eu introduzira, junto com minha esposa
Betânia, estava o diagnóstico pré-natal de doenças genéticas pelo
estudo do líquido amniótico coletado na 16ª semana de gravidez.
Naqueles tempos, a revista
Veja publicava em sua última
página a coluna “Ponto de vista”. Na edição de 6 de agosto de 1986 saiu
ali um artigo meu: “Nem todo vivente é pessoa”. Observem a similaridade
deste título com a afirmativa da tese de filosofia de 2010.
Localizei o artigo que fiz para a
Veja em meus arquivos.
Fiquei satisfeito quando, ao lê-lo, descobri que estava bem escrito e
que, nos dias de hoje, 24 anos após a publicação, ainda considero os
argumentos válidos e necessários. Mais importante ainda, concordei com
tudo que disse e acho que as minhas colocações continuam muito
importantes!
Assim, decidi reapresentar e depois comentar brevemente este artigo aqui na
Deriva Genética, o que faço agora, sem mudar nem uma vírgula.
O artigo de 1986
Vejamos o texto de 24 anos atrás:
Nos últimos anos a capacidade médica de obter informações sobre o
feto cresceu dramaticamente. Uma nova gama de técnicas, coletivamente
chamadas de diagnóstico pré-natal, já permite obter dados sobre a saúde
da criança que vai nascer e possibilita o diagnóstico preciso de um
grande numero de doenças ainda nos primeiros meses de gravidez. Essas
técnicas, principalmente o estudo genético do líquido amniótico – aquele
que envolve o feto durante a gestação – e a ultrassonografia de alta
resolução, já estão sendo rotineiramente utilizadas nos modernos centros
médicos do Brasil.
O objetivo principal do diagnóstico pré-natal é simples: obter
informações sabre o feto em gestações nas quais o risco de nascimento de
uma criança anormal é elevado. Nos casos em que uma doença grave e
incurável é detectada, a lei permite, na América do Norte e na Europa,
que os pais escolham entre a continuação e a interrupção da gravidez. No
Brasil, porém, tal liberdade de escolha é cerceada pelo artigo 128 do
Código Penal, que proíbe o aborto terapêutico – e condena os pais, mesmo
sabendo com certeza o destino que lhes aguarda, a terem um filho
anormal. Ressalte-se que em algumas outras circunstâncias especiais o
aborto é permitido pela lei brasileira – quando a vida da mãe está em
risco iminente ou quando a gravidez resulta de estupro. Já é hora de o
Código Penal brasileiro ser modificado de forma a não caracterizar como
crime o aborto terapêutico, permitindo interromper gestações nas quais
for comprovada a presença de doença fetal grave e incurável.
Essa discussão traz embutida, certamente, uma grave problemática de
ordem moral. Por um lado, temos o respeito profundo à vida do feto e,
pelo outro, temos de levar em conta o enorme sofrimento que os graves
problemas mentais e físicos certamente trarão para a família e para a
própria criança. Esse dilema ético não deve, porém, ser confundido com a
questão do aborto livre, para o qual não existe qualquer justificativa
médica. O que se defende aqui é o direito de a família optar pela
interrupção de uma gravidez quando há certeza da presença de doença
fetal grave e incurável. Ainda assim, qualquer enquete de opinião sobre a
descriminalização do aborto terapêutico no Brasil certamente revelaria
dois grandes grupos antagônicos. Um deles enfatizaria a santidade da
vida ou o direito à vida – opinião adotada pela Igreja Católica – e o
outro se bateria pela qualidade da vida. Embora agudizada na questão do
aborto, essa oposição de teses permeia todo o trabalho da medicina
moderna.
O conceito de santidade da vida frequentemente se choca com o
conceito de utilidade social – uma discussão que, obviamente, extrapola o
campo técnico e moral da medicina. A pena de morte é um exemplo
clássico de uma situação em que os interesses da sociedade são postos
acima da santidade da vida. Outra situação é a guerra, na qual a
sociedade, a lei e a própria Igreja admitem que se mate, mesmo quando a
vida do indivíduo não corre risco direto. Recentemente, no Brasil,
indivíduos que haviam assassinado suas esposas foram absolvidos em júris
populares por ter agido em “legítima defesa da honra”. É patente que o
conceito de santidade da vida não é claro nem objetivo, sendo antes um
conc
eito ideológico que muda com a dinâmica das esferas social, política
e econômica da sociedade.
A força fundamental do conceito de qualidade de vida vem da sua
ligação com a responsabilidade humana autêntica. Apenas os seres humanos
podem decidir o que é realmente humano e não devem fugir das
implicações de diferenciar a vida biológica da vida social útil,
distinguindo vivente da pessoa. A vida puramente biológica não tem em si
o suficiente para definir uma existência humana. Decisões devem ser
tomadas à luz da necessidade de prevenir ou reduzir o sofrimento das
famílias e da sociedade, e não apenas em resposta a direitos imagináveis
de fetos lesados pela doença ao ponto de jamais poderem reivindicar
esses direitos.
Certos críticos atacam o conceito de qualidade de vida temendo que a
sua aceitação poderia levar à defesa do infanticídio de crianças
defeituosas. Há, entretanto, uma enorme diferença entre o feto
pré-viavel – que depende do corpo da mãe para sua existência – e o
recém-nascido, que já tem o status moral de um ser humano independente.
Após o nascimento, os pais são fundamentalmente responsáveis pela
proteção da criança. Essa relação especial envolve ser guardião,
advogado e defensor dos direitos da criança, mesmo quando esses entram
em conflito com os próprios interesses egoístas ou os interesses da
sociedade. Isso é paternidade responsável. Mantendo-se essa distinção em
mente, pode-se chegar a uma posição ética que medeia entre a respeito à
vida do feto e a redução do sofrimento causado por doenças graves e
incuráveis.
Com a adoção de técnicas de diagnóstico pré-natal no Brasil, centenas
de pacientes têm se beneficiado delas e alguns abortos terapêuticos têm
sido feitos, apesar da proibição legal. Em um futuro não muito
distante, o Brasil alcançará a situação da América do Norte e da Europa,
onde a maioria das gestações é acompanhada por exames do líquido
amniótico. Nos Estados Unidos, um estudo recente revelou que entre as
mulheres de idade avançada que estavam fazendo acompanhamento genético
da gestação, aproximadamente 5% teriam interrompido a gravidez caso não
existisse o diagnóstico pré-natal. Não estaria o aborto terapêutico
permitindo gestações que jamais se concretizariam sem ele e, assim,
paradoxalmente, salvando vidas?
Fac-símile do artigo de autoria do colunista, publicado em 1986, na revista Veja.
Post-scriptum
Hoje, 24 anos depois, o diagnóstico pré-natal avançou
significantemente. A coleta de vilos coriônicos – uma punção segura e
confiável, realizada com apenas 12 semanas de gestação – é capaz de
fornecer resultados completos em 24 horas! Com os avanços da
citogenética molecular, podemos também ter resultados em um dia com a
amniocentese, que antes demoravam duas semanas.
Diagramas das duas principais técnicas de coleta fetal usadas em
diagnóstico pré-natal: a coleta de vilos coriônicos realizada a partir
da 12ª semana de gravidez (A) e a amniocentese genética realizada na 16ª
semana de gravidez (B). Desenhos cortesia do Laboratório Gene – Núcleo
de Genética Médica.
Graças às investigações do DNA fetal circulante no sangue materno, nos
próximos anos teremos o diagnóstico pré-natal não-invasivo, o que
simplificará e ampliará consideravelmente o seu uso. E as novidades
científicas continuam a surgir, ano a ano.
Se por um lado muito mudou na genética laboratorial, por outro lado,
pouco mudou na legislação brasileira sobre o abortamento terapêutico,
que continua proibido.
O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou favorável ao abortamento
terapêutico em caso de feto anencéfalo, mas o Código Penal (que é de
1940!) continua o mesmo. Não estaria na hora de resolvermos isso de uma
vez por todas?
Sergio Danilo PenaDepartamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/deriva-genetica/nem-todo-vivente-e-pessoa