Insegurança à mesa – e na mídia
28/09/2012 16:46
| Autor: Bernardo Esteves
A divulgação na semana passada de uma pesquisa de conclusões
alarmantes reavivou a polêmica sobre os transgênicos. Um estudo de longo
prazo constatou que ratos alimentados com milho geneticamente
modificado tratado com herbicida tiveram maior incidência de tumores.
Apresentados na imprensa ora como sinal inequívoco do risco da
biotecnologia, ora como fruto de um estudo discutível, os resultados
deixam no ar a dúvida sobre como se posicionar num debate em que parece
não haver opinião isenta.
O estudo que motivou a polêmica foi realizado pela equipe de Gilles-Eric Séralini, da Universidade de Caen, na França, e
publicado no último dia 19 na revista
Food and Chemical Toxicology.
A variedade de milho transgênico usada na pesquisa – NK603 – é
produzida pela Monsanto, que também fabrica o herbicida ao qual ela é
resistente (Roundup), também testado no estudo. Duzentos ratos foram
acompanhados ao longo de dois anos, praticamente o tempo de vida dessa
espécie. Estudos anteriores se limitaram a monitorar os animais por
poucos meses – a liberação da produção comercial desse milho em vários
países (inclusive o Brasil) se baseou nos resultados desses trabalhos.
Os resultados relatados no artigo são preocupantes. Entre os animais
alimentados com o milho transgênico, de 50% a 80% das fêmeas
desenvolveram tumores – a taxa foi de 30% no grupo de controle, que
ingeriu apenas milho convencional. Dentre os que comeram transgênicos,
até 50% dos machos e 70% das fêmeas morreram antes do que se esperaria,
diante da sua expectativa de vida; nos animais de controle, a taxa foi
de 30% entre os machos e 20% entre as fêmeas. A lista de efeitos inclui
ainda problemas de fígado e rim nos animais alimentados com
transgênicos.
Na imprensa francesa, os resultados do estudo foram comprados por seu valor de face, ao menos num primeiro momento. O jornal
Le Monde relatou os resultados sem grande questionamento. O caso mais emblemático foi o da revista semanal
Le Nouvel Observateur, que não hesitou em dar à sua
reportagem de capa
sobre o tema o título “Sim, os transgênicos são veneno!” A matéria
concluía que, “para os transgênicos, a era da dúvida se encerra e começa
o tempo da verdade”.
A cobertura acrítica foi influenciada por uma estratégia discutível
usada na divulgação do trabalho. Conforme é a praxe no jornalismo de
ciência, alguns repórteres tiveram acesso antecipado ao artigo que
relata os resultados do estudo. No entanto, em contraste com a maioria
dos casos em que esse sistema é utilizado, os jornalistas tiveram que
assinar um termo de confidencialidade se comprometendo a não
compartilhar o estudo com outros especialistas, que poderiam oferecer
alguma perspectiva crítica ao trabalho.
O blog
Embargo Watch, ao discutir essa estratégia,
comparou a estenógrafos os jornalistas que se submeteram a esse sistema.
Ao comentar o caso
em seu blog, o jornalista americano Carl Zimmer escreveu: “Esse é um
meio repugnante e corrupto de escrever sobre ciência. Pega mal para os
cientistas envolvidos, mas (...) também para a nossa profissão.”
Uma vez publicado o artigo, vieram à tona críticas de pesquisadores não
envolvidos com o estudo. Em entrevista à agência Reuters, um cientista
britânico
questionou os métodos estatísticos
usados na análise e lembrou que a variedade de ratos escolhidos para o
estudo é especialmente propenso a desenvolver o tipo de tumores
observado no estudo.
Em
reportagem do New York Times,
o especialista em ciência alimentar Bruce Chassy estranhou que nenhum
efeito similar tenha sido observado nos animais que se alimentam de
transgênicos há anos. “Não se trata de uma publicação científica
inocente”, acusou. “Trata-se de um evento de mídia bem planejado e
habilmente orquestrado”.
Séralini foi criticado também por lançar o estudo na mesma época em que põe nas livrarias o livro
Tous Cobayes! (‘Todos cobaias!’), em paralelo ao lançamento de um documentário homônimo dirigido por Jean-Paul Jaud.
Na América Latina, a
cobertura foi acrítica, segundo apontou análise do
KSJ Tracker.
No Brasil, os três maiores jornais diários não têm em seus sites
notícias sobre o estudo. Na cobertura dos portais na internet, baseada
principalmente em despachos de agências noticiosas internacionais, as
críticas feitas ao estudo nem sempre foram lembradas.
Entidades brasileiras alinhadas com a defesa dos transgênicos, como o Conselho de Informação de Biotecnologia,
questionaram a credibilidade da pesquisa. Já o biólogo Jean-Remy Davée apresentou o estudo como
um divisor de águas do debate sobre a segurança dos transgênicos em sua coluna na
Ciência Hoje On-line.
O colunista citou as principais críticas ao estudo e concluiu que “não
existem publicações inocentes, nem cientistas inocentes. A não ser,
talvez, aqueles que creem que as indústrias nos contam tudo sobre seus
produtos, não compram apoios científicos, políticos e midiáticos e não
tentam calar os eventuais dissidentes”.
Foram poucos os relatos que apresentaram a reação dos autores às críticas. Num blog do
Guardian, John Vidal
sistematizou as respostas de Séralini
aos principais questionamentos. O líder do estudo alegou que o tipo de
ratos usado na pesquisa é o mesmo empregado nos outros estudos sobre o
impacto dos transgênicos e se dispôs a trazer a público os dados brutos
de seu estudo – desde que a Monsanto faça o mesmo com os resultados dos
estudos que levaram à liberação do milho NK603 na Europa.
O estudo foi publicado num periódico respeitado e submetido à avaliação por outros cientistas da área. À
Nature, o editor da
Food and Chemical Toxicology alegou que o trabalho
não suscitou alerta especial durante a revisão.
A divergência de pontos de vista “autorizados” sobre uma questão
sensível como a dos transgênicos é frustrante, especialmente para o
leigo. Num debate em que as partes envolvidas parecem todas ter uma
agenda bem definida, mas nem sempre transparente para o público, é
complicado saber que credibilidade dar a cada argumento.
Nesse ambiente de incerteza, é saudável a notícia de que o estudo vai
ser auditado pela Autoridade Europeia de Segurança Alimentar e por
outras agências,
conforme anunciado
no auge da polêmica. Que se concorde ou não com o estudo, seus métodos e
resultados, parece razoável apoiar a recomendação final do artigo, em
que os autores propõem que transgênicos usados na alimentação e os
pesticidas sejam “avaliados muito cuidadosamente por estudos de longo
prazo para medir seus efeitos tóxicos”.
(foto: Ian Hayhurst – CC 3.0 BY-NC-SA)
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