domingo, 11 de abril de 2010

Jogo mortal canibalismo sexual de alguns animais

Jogo mortal

As fêmeas de algumas espécies de aranhas e outros animais se alimentam dos machos após o coito. Quais serão as vantagens desse canibalismo sexual? Em sua coluna de abril, Jerry Borges discute esse curioso fenômeno biológico.

Por: Jerry Carvalho Borges
Publicado em 05/04/2010 | Atualizado em 08/04/2010
 Fêmea de aranha da espécie 'Nephila clavata' devora o macho após a cópula. O canibalismo sexual é bastante comum em aranhas e escorpiões (foto: flickr.com/kumon - CC BY 2.0).

O hábito bizarro das fêmeas do louva-a-deus e da aranha viúva-negra de se alimentar dos machos durante a cópula é bastante conhecido. Recentemente a ciência tem procurado compreender mais profundamente essa forma extrema de canibalismo que pode ter efeitos significativos sobre o tamanho e a proporção entre machos e fêmeas das populações afetadas.
O canibalismo sexual ocorre quando a fêmeas matam e se alimentam dos machos de sua espécie antes, durante ou após a cópula. Essa forma de predação intraespecífica é um evento raro, descrito apenas em alguns crustáceos, moluscos, insetos e em aranhas e escorpiões, em que ele é bastante comum.
Apesar de o canibalismo sexual ser descrito quase que exclusivamente para as fêmeas, alguns crustáceos são exceções a essa regra. Nessas espécies os machos, que são maiores, podem predar as fêmeas durante o ato sexual.
Os motivos que fazem um macho se sacrificar durante a cópula podem parecer intrigantes. Esse comportamento de risco é resultante dos hormônios sexuais que levam os machos a buscar parceiras durante o período reprodutivo. Um coquetel de feromônios e comportamentos femininos voltados para atrair parceiros também contribuem para o processo.

É preciso ter em mente que os interesses reprodutivos são diferentes para ambos os sexos. Para as fêmeas, o canibalismo sexual pode assegurar a obtenção de nutrientes indispensáveis para a reprodução. Para elas, portanto, os machos, além doadores de esperma, seriam vistos apenas como mais uma presa.
Já para os machos, o envolvimento com as fêmeas pode parecer à primeira vista um  ‘jogo mortal’ – para eles, a predação de que são vítimas seria aparentemente desastrosa. Mas um exame detalhado desse processo pode indicar que mesmo os machos predados podem ganhar algo: esse comportamento suicida poderia assegurar a transmissão de seus genes para a prole. Seria, assim, um investimento parental extremo e uma forma de altruísmo masculino que garantiria o sucesso reprodutivo da espécie.
Deve-se levar em conta também que, em várias espécies, o ato sexual afeta os órgãos copulatórios masculinos e muitos machos não resistem a esses ferimentos ou tornam-se estéreis. É o que acontece, por exemplo, com os machos da aranhas Argiope aemula e Latrodectus hasselti. Por outro lado, machos de outras espécies – como a viúva-negra Latrodectus mactans – sobrevivem à cópula e podem fertilizar outras fêmeas.

Mesmo feridos após atacados pela fêmea, machos da espécie 'Argiope aemula', como o espécime da foto, se reaproximam para tentar copular novamente (foto: Akio Tanikawa - CC BY-SA 2.5).
Contribuição masculina
Pesquisas com duas espécies de aranhas indicam que machos podem ‘contribuir’ de alguma forma para o seu destino trágico. Nas duas espécies em questão, a reprodução depende da transferência de esperma por meio da inserção de um ou de ambos os palpos masculinos no corpo das parceiras.
Machos de Argiope aemula resistem fortemente quando capturados por fêmeas e podem chegar a perder algumas pernas para se defender. Contudo, vários dos machos sobreviventes se reaproximam da fêmea para tentar copular novamente e se tornam vítimas de suas parceiras sem opor resistência.
Esse comportamento peculiar pode estar associado com a necessidade desses machos ‘camicases’ de ter um período maior para a sua cópula ou, talvez, com uma tentativa deles de impedir o acesso de outros machos às fêmeas.
Já machos da Latrodectus hasselti (ou aranha-de-costas-vermelhas, como é chamada em inglês), por sua vez, dão saltos durante a cópula e acabam posicionando o seu abdome diretamente sobre as partes bucais das fêmeas que, assim, têm sua tarefa facilitada. Os machos predados pelas fêmeas não interrompem o processo de fecundação e permanecem no ato sexual por cerca de 10 a 15 minutos – aproximadamente o dobro de tempo de um macho que não foi predado.

Esse curioso ato masculino é vantajoso, pois diminui a probabilidade de novas cópulas femininas e gera uma proporção maior de ovos fertilizados do que os cruzamentos comuns. Obviamente, essas vantagens só são obtidas se o canibalismo ocorrer após a transferência do esperma.
Nessas duas espécies, os machos são bem pequenos e possuem apenas cerca de 2% do peso corporal de fêmeas. Assim, sua predação contribui muito pouco para o ganho de peso feminino ou para o desenvolvimento dos ovos. Por outro lado, em outras espécies, como nas aranhas de jardim Araneus diadematus, o canibalismo sexual proporciona um ganho de peso significativo para as fêmeas.

 Em espécies como a 'Dolomedes fimbriatus', o canibalismo sexual é praticado principalmente por fêmeas jovens, para as quais os nutrientes dos machos são importantes para o desenvolvimento (foto: N.Vėlavičienė - CC BY-SA 3.0).

Tamanho e fecundidade
A fecundidade das fêmeas de aranhas depende de seu tamanho e normalmente é determinada pela alimentação obtida durante a fase juvenil. Na espécie Dolomedes fimbriatus, o canibalismo sexual é realizado principalmente por fêmeas jovens, que necessitam de nutrientes para seu desenvolvimento. Contudo, essa prática é prejudicial na idade adulta, pois não contribui para o crescimento e pode fazer com que as fêmeas canibais permaneçam sem se acasalar.
Já o canibalismo sexual antes da cópula tem um significado totalmente diferente, pois pode impedir a ocorrência de fecundação. Essa modalidade talvez seja resultado de uma tentativa das fêmeas de evitar o acasalamento. De acordo com essa hipótese, as fêmeas avaliariam o potencial reprodutivo dos seus parceiros e simplesmente eliminariam aqueles que não as atraíssem. Vida de aranha macho não é fácil!

A territorialidade também deve ser considerada na análise do canibalismo sexual. As fêmeas de aranhas canibais, por exemplo, defendem fortemente o seu território. A invasão deste por indivíduos de ambos os sexos costuma resultar em disputas fatais.
Várias estratégias são utilizadas pelos machos para evitar o canibalismo sexual. Esses indivíduos se aproximam cautelosamente das fêmeas, tentam copular a uma distância segura e se retiram rapidamente após a cópula. Machos de viúva-negra, de aranhas-caranguejo (família Thomisidae) e de espécies da família Tetragnathidae podem prender as fêmeas em suas teias antes da cópula ou imobilizar as suas parceiras durante o ato sexual.

Escorpião e louva-a-deus

Escorpiões machos, por sua vez, picam e imobilizam temporariamente as fêmeas após a cópula. Os machos de aranhas construtoras de teias (Araneidae) e de aranhas saltadoras se aproximam apenas de fêmeas que estejam em período de muda – época em que o canibalismo não é possível – ou esperam para copular quando as fêmeas estejam se alimentando.

Fêmea de louva-a-deus se alimenta do macho. Há indícios de que, nessa espécie, a continuação da cópula mesmo após a decapitação do macho contribui para o sucesso da reprodução (foto: Oliver Koemmerling - CC BY-SA 3.0).

 Nos louva-a-deus, o sucesso da cópula não depende exclusivamente do canibalismo sexual. Contudo, nesses animais os machos podem copular mesmo depois de decapitados. Há inclusive indícios de que isso contribua para o sucesso da reprodução por meio da remoção da inibição neural dos movimentos copulatórios e de um auxílio na liberação de esperma. Contudo, como os machos de louva-a-deus podem se acasalar diversas vezes durante a vida, o canibalismo sexual pode afetar a diversidade genética dessa espécie.

As fêmeas de louva-a-deus obtêm nutrientes essenciais para a manutenção de sua prole com a prática do canibalismo dos machos. As fêmeas da espécie Tenodera aridofolia sinensis, por exemplo, têm até 63% da dieta composta por machos. Essa dieta faz com que elas produzam cápsulas com ovos (ootecas) maiores e um número de ovos e prole mais elevados. Uma única ooteca pode atingir cerca de 30-50% do peso da fêmea, o que representa um tremendo investimento para esses animais.
Portanto, o canibalismo sexual parece envolver um balanço entre diversos fatores, como a agressividade das fêmeas, a qualidade nutricional e o tamanho dos machos, as estratégias defensivas masculinas e a fecundidade e a razão sexual nas populações envolvidas. Além disso, a presença e a facilidade de captura de outras presas devem também ser consideradas.
A contribuição de cada um desses fatores pode variar sutilmente em cada caso analisado, o que torna a análise deste jogo mortal entre machos e fêmeas extremamente complexa e sujeita a um intenso debate.

Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras
http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/por-dentro-das-celulas/jogo-mortal

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